Valores da cultura europeia
Há um quadro de valores que são menos herdados que construídos: o sentido da responsabilidade perante uma entidade suprema elevou a dignidade humana ao plano divino e estimulou o processo de identidade e de diversidade pelo respeito da singularidade.
A tradição europeia guarda um conjunto de valores que se podem ver retratados na máxima socrática do gnothi sauton reconhecida pela Pítia délfica, que pode ser interpretada como: conhece-te a ti mesmo e não ambiciones ser mais do que tu mesmo, homem como homem, sem aspirar a ser deus, pois seria injúria aos deuses e serias condenado por hubris, excesso e transgressão dos teus limites; não cobices ter o que não é teu porque serias vítima de ti próprio e como da terra saíste a ela voltarás pela morte.
Os valores da cultura europeia aparecem sob nomes diversos, tantas são as manifestações do humano e das relações constituídas com o universo em que o homem se movimenta.
Enumeremo-los, ao menos nos principais: pietas, no cumprimento dos deveres para com os deuses e os familiares ou também para consigo mesmo no respeito, na consideração do próprio, pois, sendo livre, o homem não dispõe de si senão integrado e em modo de construção racional e relacional, sempre incompleta e imperfeita; honor sentimento vinculado ao cumprimento do honestum, que dimana da virtus e tem reconhecimento do decorum, que irradia decus, de onde decorre a dignitas, que envolve o sentido de liberdade e de respeito por si e pelos outros; compreende bona fides, compromisso de cumprimento da palavra dada e associada a pax, construída como observância de pactum alguma vez firmado e mantido; compreende longaminitas, de que que sabe esperar e estende a mão, em gesto de filantropia e de solidariedade; assegura respeito pelo senex como guardião das tradições que são sabedoria acumulada, mas aceita a novitas como dom em superação de si mesmo, considerando a criatividade em juízo crítico como factor de integração em processo de vida em comum; revela-se o encanto pela beleza como expressão da Natureza e como resultado da construção humana; demonstra-se no labor de todos os dias, como trabalho e cultivo da Terra, que é dom da Natureza, mas sobretudo como princípio de construção pessoal — é tanto mais improbus quanto deve ser contínuo, paciente e perseverante, abnegado e solícito; mantém o sentido da iustitia que vive da pax e da harmonia, na distribuição de deveres e de obrigações na equidade, no cumprimento das leis e no respeito pelas diversidades, mas sem excluir a aemulatio, que se propõe ultrapassar a si próprio — mais que aos outros, num ideal de perfeição que não se satisfaz com o que já conseguiu, porque a vitória é acto final; enfim, promoção do Homem, até torná-lo humanior, na prossecução de uma vida em comum, respeitadora dos cidadãos sem negar o acolhimento dos estranhos, pois eles são merecedores de acolhimento já que reflexo do sagrado que a vida lhes confere, guardando a memória e apostando em tempos melhores.
Mesmo quando se torna vencedor dos seus inimigos, o homem ocidental deve saber que não tem o direito de o espezinhar: de Virgílio (Eneida, VI 847-853) recebe a injunção de parcere subiectis et debellare superbos, ou seja, de «ser indulgente para com os dominados, ainda que tenha sido capaz de se impor aos arrogantes», porque a paz deve ser o horizonte de acção — hae tibi erunt artes, pacisque imponere morem, ou seja, «tuas manobras sejam estas: implantar desígnios de paz».
excerto de «Europa: um processo longo, em andamento oscilante», de Aires A. Nascimento (em homenagem a Vasco Graça Moura), publicado no Suplemento de Lumen Veritatis, Boletim da Sociedade Científica da Universidade Católica Portuguesa, número 32, Dezembro 2015.